sexta-feira, 2 de julho de 2010

O jantar


 
New York, 1975, por aí, a lembrança me trai.
Morava em um pequeno apartamento no topo de um prédio de quatro andares.  Eu dividia o final do corredor com o apartamento vizinho, isolado do resto do prédio, longe da escada.
Minha vizinha era Arlete, uma brasileira muito simpática e prestativa. Repartíamos aquele canto muito especial e privativo. Ela tinha sempre muitas visitas e em algumas ocasiões as portas ficavam abertas e as pessoas iam e vinham de um apartamento ao outro. Eu era jovem e afoito. Divertia-me com tudo na vida. Adorava uma boa conversa.
Certo dia Arlete bateu à minha porta e me convidou para um jantar que ela oferecia a uma amiga, Aline, que tinha se casado há pouco tempo e ia trazer o marido para apresentar e ela me convidou pra fazer parte da reunião. Tudo bem, combinado.
Na hora do jantar, sentamos à mesa de forma que eu fiquei de frente para Aline e Arlete ficou de frente pro russo, cujo nome não lembro, que mais parecia agente do KGB, meio assustador. Ele era bem mais velho que Aline.
Começamos a comer, conversa acalorando e se expandindo, deixando todos mais tranquilos e simpáticos.
No meio disso tudo, sinto algo roçar na minha perna, suave mas insistentemente. Soltei o pé do sapato e segui discretamente, no tato, o pé que me tocava. Era Aline que seriamente olhava para mim com se nada estivesse acontecendo Retribuí o toque e subi com o pé pela boca de sua calça comprida, larga e fiquei acariciando a sua perna, o que, aparentemente, agradou. Só ficou um pouco difícil mastigar com todo aquele malabarismo. Acima da mesa, nada transpirava, tudo era normal. Mil coisas me passavam pela cabeça. A loucura do ato, o gorila ao meu lado, garfos, facas, garrafa de vinho sobre a mesa. Uma infinidade de tragédias por acontecer, caso o lance fosse descoberto. Não foi.
Jantar terminado, papo esgotado, despedidas feitas e lá se foram os pombinhos, digo, a pomba e o gorila, para casa. Revi tantos filmes de espionagens em meus sonhos, facas voavam, garfos espetavam minhas mãos à mesa, uma salada de pesadelos e torturas. No fundo de tudo aquela sensação de aventura daquele toque por baixo da mesa.
Semanas se passaram. Um dia batem à minha porta. Abro e dou de cara com Aline, olhar perturbado, apreensiva e ofegante. Perguntou se podia entrar. Abri caminho. Ela foi direta pro meu quarto e se jogou na cama, chorosa.
Perguntei o que estava acontecendo e ela disse que tinha saído de casa e não tinha para onde ir. Perguntou se podia pousar ali, no que concordei. Ainda tinha na lembrança aquele pé que me procurou por baixo da mesa.
Conversava vai, choro vem e terminamos em um enlace amoroso e nos acomodamos para a noite.
Uma forte batida na porta me trouxe de volta à realidade. Olhei pelo visor e ele ficou cheio do russo que gritava “- EU SEI QUE TEM GENTE EM CASA!”, falava, com um forte sotaque, que não melhorava em nada a lembrança de meus sonhos.
Abri uma fresta da porta e comentei “-você me acordou, do que se trata?”.
“-ALINE FUGIU DE CASA, BRIGOU COMIGO E ME LARGOU! ELA ESTEVE AQUÍ? A SUA VIZINHA ARLETE NÃO ESTÁ!”.
“-Não, não a vi”, respondi “–Não a vejo desde o dia do jantar”, afirmei pra ele, com a sua mulher, quase despida, por trás da porta. “-Sinto não poder ajudá-lo”.
 Aborrecido, mas convencido ele se foi batendo os pés pesadamente, escada abaixo. Não soube mais dele.
A aventura se tornou relacionamento e tivemos uns bons momentos juntos. No começo tínhamos precaução ao sair de casa na suspeita do homem estar de olho no prédio, procurando a mulher dele. Nada aconteceu. Começamos a relaxar e acabamos esquecendo o acontecido.
Já havia mais de um ano desde que começamos a viver junto. Uma noite, vindo do cinema, quase chegando a uma esquina, vejo um carro frear bruscamente. A porta se abriu com violência e de dentro me sai o conhecido agente KGB, gritando “-ALINE, ALINE!”. Paramos, congelados. Ele se virou pra mim, olhou bem nos meus olhos e gritou com tudo que seus pulmões permitiram - “SEU URSO!”, entrou no carro, bateu a porta e saiu em disparada rua acima.
Quase morri naquele dia

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Entre ficantes e distantes, onde ficam os amantes?

Cadê o encontro na praça, o esfrega no canto do muro, o beijo roubado ao portão? Hoje você fica e não vai a nada. Ganhou a aparência pela essência. Fulana é bonitinha, beltrano é gostosão. Títulos comprados em grife. É o medo do amor nu, de querer, ousar, errar e partir pra outra. Tudo tem que dar certinho ou não se tenta, nada se arrisca, muito se sofre sem viver, só na mente, só no “e se não rolar”. Sem risco não tem graça. Amor programado, simulado pra ver se vai dar. E se há um bug na simulação. Se a nossa mente nos trai “-ele não quer nada, ela nem sequer olhou, é roubada, não vai dar em nada”. Sentimentos premeditados, a mente não fala com o coração e sofre na antecipação do erro que ainda não chegou.
Amar é liberdade, é aventura, sair de peito aberto sem temer. É como guerra antiga, enfrentando o fogo que vem do outro lado sem pensar em se proteger, apenas conquistar. A queda é acidente de percurso, é o preço a pagar. O fruto é o amor pra te saciar, te afagar.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

A bolinha

Que tarde de sábado gostosa. Amigos em volta, papo, um churrasquinho pra acalmar a fome e a costumeira cerveja gelada pra aplacar a sede e molhar a conversa. As crianças se divertindo com os estranhos desenhos animados que a tv despejava diante de seus crédulos e fixados olhares.
-Olha tio! – me diz um deles – ganhei esta bolinha, não é linda? – e em frente a meus olhos aquela mãozinha me mostrava uma colorida e brilhante bola de gude. Lembrei dos tempos em que tinha uma coleção delas, todas as cores. Jogava búlica, mata-mata, era divertido.
-Olha tio, vou brincar com a bolinha. E lá se foi pro quintal, todo contente, bolinha na mão. Mal sabendo que carregava em sua mão uma cultura infantil milenar.
Li uma vez que bolinhas de gude feitas de pedras semipreciosas foram encontradas em um túmulo de uma criança egípcia, datado em 3000 aC. Portanto é cultura antiga que sobrevive aos anos, embora sendo aos poucos esquecidas, soterradas por uma cultura de tecnologia avançada de vídeo games onde a infância vai aos poucos perdendo seu espaço.
E fiquei absorto, me lembrando de minha infância distante quando o suave transe em que flutuava foi quebrado com uma voz infantil me dizendo:
-Tio, perdi minha bolinha.
De volta ao mundo real, simpatizando com o menino e sua expressão triste, fui tentar, em vão, encontrar a bolinha.
Após algum tempo desistimos e ele se absorveu novamente nos estranhos desenhos animados da televisão. Voltei ao gostoso papo que antes levava.
E assim a noite terminou, os amigos foram embora e eu fui dormir, contente pela companhia que tive e da boa conversa trocada com os amigos que em minha casa vieram.
No dia seguinte, estava eu andando pelo quintal, quando do nada, pisei em algo que fez meu pé se projetar para frente e me senti elevado no ar. Um sentido de total leveza, em queda livre e o que vinha em minha mente era só aquela carinha com um sorriso de dentes crescendo, dizendo – “Tio, perdi minha bolinha”. Eu tinha acabado de achar a bendita bolinha.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Noite

Não gosto muito de ti. Fico inquieto, agitado, durmo em etapas, medindo a hora do dia chegar.
Tua obscura quietude, quebrada por um latido distante de algum cão acordado pela passagem de alguém.
Foi tempo em que te amava e passava horas adentro celebrando com amigos o teu tempo passar.
Agora nada disso basta, te ignoro, tento de ti fugir no sono que me trai e me retorna a tua calada vigilância.
Quanto tempo mais para um raio de sol me salvar e terminar esta agonia solitária a que me entrego no fim de cada dia?

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Segue aquela bola



Golfe, um esporte que se divide entre a extrema violência e uma tranqüilidade bucólica.
Logo ao início, a bola é ferozmente atacada por um taco, pedaços de grama, buracos no chão, até que num golpe de sorte você acerta a bola, que sai voando por cima das árvores, rasgando o ar, temerosa, assustando incautos pássaros que por ali voam. E lá se vai, selando seu destino de uma longa e exaustiva caminhada por um gramado sem fim, cercado pelas frondosas árvores que há pouco eram sobrevoadas pela sua bola, que agora se encontra em um distante ponto da bucólica paisagem que persiste em não terminar.
Após uma busca intensa você encontra a tão procurada bola e novamente parte para um feroz ataque, tentando fazê-la chegar ao buraco, lá longe, marcado por uma bandeirinha que você mal consegue ver de onde está.
E assim segue o dia.
Depois de muitas tentativas, erros e acertos, seis buracos conquistados, eis que ela resolve pousar bem em um dos buracos cheios de areia. A violência sentida pela grama é agora transferida pra areia que se espalha por todos os lados até que em uma tacada de sorte, você acerta a bendita bola e lá vai ela pelos ares novamente. Você a segue atentamente, na esperança de acertar a grama onde a bandeirola se agita ao suave vento que sopra, marcando o alvo a ser atingido, vento este que aos poucos vai desviando a bola de seu destino e ela cai antes, mergulhando nas águas do lago, a pouco menos de um metro do gramado ao qual ela era destinada.
A esta altura, agoniado e irritado com o que seria um meio de eliminar meu estresse, me levanto da poltrona, desligo o computador e desisto do vídeo game.


domingo, 27 de junho de 2010

A ordem das coisas


Todos têm uma idéia de como é. Nunca chega perto do meu entendimento de tal ordem. Para os outros as minhas coisas estão sempre fora de ordem, ou seja, em desordem.
No emaranhado de coisas que se acumulam em cima de minha mesa, o aparente caos é deliberado. Nele eu encontro uma organização estranhamente relacionada. Eu sei que vou achar clipes de papel no lado esquerdo, abaixo de recibos soltos, de compras de algumas semanas atrás que por si estão em cima daquele livro de mistério que foi uma boa idéia ler, mas que espera uma continuidade há três meses. Mas sei que volto a ler, por isso está lá, esperando. Entre blocos de notas, bilhetes de loterias não vencidas, recibos de minha sorte. Está tudo lá, desordem aparente, para mim formas abstratas que me direcionam ao que procuro. Se arrumasse nunca acharia um lápis sequer.