New York, 1975, por aí, a lembrança me trai.
Morava em um pequeno apartamento no topo de um prédio de quatro andares. Eu dividia o final do corredor com o apartamento vizinho, isolado do resto do prédio, longe da escada.
Minha vizinha era Arlete, uma brasileira muito simpática e prestativa. Repartíamos aquele canto muito especial e privativo. Ela tinha sempre muitas visitas e em algumas ocasiões as portas ficavam abertas e as pessoas iam e vinham de um apartamento ao outro. Eu era jovem e afoito. Divertia-me com tudo na vida. Adorava uma boa conversa.
Certo dia Arlete bateu à minha porta e me convidou para um jantar que ela oferecia a uma amiga, Aline, que tinha se casado há pouco tempo e ia trazer o marido para apresentar e ela me convidou pra fazer parte da reunião. Tudo bem, combinado.
Na hora do jantar, sentamos à mesa de forma que eu fiquei de frente para Aline e Arlete ficou de frente pro russo, cujo nome não lembro, que mais parecia agente do KGB, meio assustador. Ele era bem mais velho que Aline.
Começamos a comer, conversa acalorando e se expandindo, deixando todos mais tranquilos e simpáticos.
No meio disso tudo, sinto algo roçar na minha perna, suave mas insistentemente. Soltei o pé do sapato e segui discretamente, no tato, o pé que me tocava. Era Aline que seriamente olhava para mim com se nada estivesse acontecendo Retribuí o toque e subi com o pé pela boca de sua calça comprida, larga e fiquei acariciando a sua perna, o que, aparentemente, agradou. Só ficou um pouco difícil mastigar com todo aquele malabarismo. Acima da mesa, nada transpirava, tudo era normal. Mil coisas me passavam pela cabeça. A loucura do ato, o gorila ao meu lado, garfos, facas, garrafa de vinho sobre a mesa. Uma infinidade de tragédias por acontecer, caso o lance fosse descoberto. Não foi.
Jantar terminado, papo esgotado, despedidas feitas e lá se foram os pombinhos, digo, a pomba e o gorila, para casa. Revi tantos filmes de espionagens em meus sonhos, facas voavam, garfos espetavam minhas mãos à mesa, uma salada de pesadelos e torturas. No fundo de tudo aquela sensação de aventura daquele toque por baixo da mesa.
Semanas se passaram. Um dia batem à minha porta. Abro e dou de cara com Aline, olhar perturbado, apreensiva e ofegante. Perguntou se podia entrar. Abri caminho. Ela foi direta pro meu quarto e se jogou na cama, chorosa.
Perguntei o que estava acontecendo e ela disse que tinha saído de casa e não tinha para onde ir. Perguntou se podia pousar ali, no que concordei. Ainda tinha na lembrança aquele pé que me procurou por baixo da mesa.
Conversava vai, choro vem e terminamos em um enlace amoroso e nos acomodamos para a noite.
Uma forte batida na porta me trouxe de volta à realidade. Olhei pelo visor e ele ficou cheio do russo que gritava “- EU SEI QUE TEM GENTE EM CASA!”, falava, com um forte sotaque, que não melhorava em nada a lembrança de meus sonhos.
Abri uma fresta da porta e comentei “-você me acordou, do que se trata?”.
“-ALINE FUGIU DE CASA, BRIGOU COMIGO E ME LARGOU! ELA ESTEVE AQUÍ? A SUA VIZINHA ARLETE NÃO ESTÁ!”.
“-Não, não a vi”, respondi “–Não a vejo desde o dia do jantar”, afirmei pra ele, com a sua mulher, quase despida, por trás da porta. “-Sinto não poder ajudá-lo”.
Aborrecido, mas convencido ele se foi batendo os pés pesadamente, escada abaixo. Não soube mais dele.
A aventura se tornou relacionamento e tivemos uns bons momentos juntos. No começo tínhamos precaução ao sair de casa na suspeita do homem estar de olho no prédio, procurando a mulher dele. Nada aconteceu. Começamos a relaxar e acabamos esquecendo o acontecido.
Já havia mais de um ano desde que começamos a viver junto. Uma noite, vindo do cinema, quase chegando a uma esquina, vejo um carro frear bruscamente. A porta se abriu com violência e de dentro me sai o conhecido agente KGB, gritando “-ALINE, ALINE!”. Paramos, congelados. Ele se virou pra mim, olhou bem nos meus olhos e gritou com tudo que seus pulmões permitiram - “SEU URSO!”, entrou no carro, bateu a porta e saiu em disparada rua acima.
Quase morri naquele dia
Morava em um pequeno apartamento no topo de um prédio de quatro andares. Eu dividia o final do corredor com o apartamento vizinho, isolado do resto do prédio, longe da escada.
Minha vizinha era Arlete, uma brasileira muito simpática e prestativa. Repartíamos aquele canto muito especial e privativo. Ela tinha sempre muitas visitas e em algumas ocasiões as portas ficavam abertas e as pessoas iam e vinham de um apartamento ao outro. Eu era jovem e afoito. Divertia-me com tudo na vida. Adorava uma boa conversa.
Certo dia Arlete bateu à minha porta e me convidou para um jantar que ela oferecia a uma amiga, Aline, que tinha se casado há pouco tempo e ia trazer o marido para apresentar e ela me convidou pra fazer parte da reunião. Tudo bem, combinado.
Na hora do jantar, sentamos à mesa de forma que eu fiquei de frente para Aline e Arlete ficou de frente pro russo, cujo nome não lembro, que mais parecia agente do KGB, meio assustador. Ele era bem mais velho que Aline.
Começamos a comer, conversa acalorando e se expandindo, deixando todos mais tranquilos e simpáticos.
No meio disso tudo, sinto algo roçar na minha perna, suave mas insistentemente. Soltei o pé do sapato e segui discretamente, no tato, o pé que me tocava. Era Aline que seriamente olhava para mim com se nada estivesse acontecendo Retribuí o toque e subi com o pé pela boca de sua calça comprida, larga e fiquei acariciando a sua perna, o que, aparentemente, agradou. Só ficou um pouco difícil mastigar com todo aquele malabarismo. Acima da mesa, nada transpirava, tudo era normal. Mil coisas me passavam pela cabeça. A loucura do ato, o gorila ao meu lado, garfos, facas, garrafa de vinho sobre a mesa. Uma infinidade de tragédias por acontecer, caso o lance fosse descoberto. Não foi.
Jantar terminado, papo esgotado, despedidas feitas e lá se foram os pombinhos, digo, a pomba e o gorila, para casa. Revi tantos filmes de espionagens em meus sonhos, facas voavam, garfos espetavam minhas mãos à mesa, uma salada de pesadelos e torturas. No fundo de tudo aquela sensação de aventura daquele toque por baixo da mesa.
Semanas se passaram. Um dia batem à minha porta. Abro e dou de cara com Aline, olhar perturbado, apreensiva e ofegante. Perguntou se podia entrar. Abri caminho. Ela foi direta pro meu quarto e se jogou na cama, chorosa.
Perguntei o que estava acontecendo e ela disse que tinha saído de casa e não tinha para onde ir. Perguntou se podia pousar ali, no que concordei. Ainda tinha na lembrança aquele pé que me procurou por baixo da mesa.
Conversava vai, choro vem e terminamos em um enlace amoroso e nos acomodamos para a noite.
Uma forte batida na porta me trouxe de volta à realidade. Olhei pelo visor e ele ficou cheio do russo que gritava “- EU SEI QUE TEM GENTE EM CASA!”, falava, com um forte sotaque, que não melhorava em nada a lembrança de meus sonhos.
Abri uma fresta da porta e comentei “-você me acordou, do que se trata?”.
“-ALINE FUGIU DE CASA, BRIGOU COMIGO E ME LARGOU! ELA ESTEVE AQUÍ? A SUA VIZINHA ARLETE NÃO ESTÁ!”.
“-Não, não a vi”, respondi “–Não a vejo desde o dia do jantar”, afirmei pra ele, com a sua mulher, quase despida, por trás da porta. “-Sinto não poder ajudá-lo”.
Aborrecido, mas convencido ele se foi batendo os pés pesadamente, escada abaixo. Não soube mais dele.
A aventura se tornou relacionamento e tivemos uns bons momentos juntos. No começo tínhamos precaução ao sair de casa na suspeita do homem estar de olho no prédio, procurando a mulher dele. Nada aconteceu. Começamos a relaxar e acabamos esquecendo o acontecido.
Já havia mais de um ano desde que começamos a viver junto. Uma noite, vindo do cinema, quase chegando a uma esquina, vejo um carro frear bruscamente. A porta se abriu com violência e de dentro me sai o conhecido agente KGB, gritando “-ALINE, ALINE!”. Paramos, congelados. Ele se virou pra mim, olhou bem nos meus olhos e gritou com tudo que seus pulmões permitiram - “SEU URSO!”, entrou no carro, bateu a porta e saiu em disparada rua acima.
Quase morri naquele dia