segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Julia - 1ª parte

Acaso

Era uma calma e fria tarde de outono em New York  e como sempre fazia aos sábados, lá estava eu perambulando pelo Soho, aproveitando o dia até escurecer, cumprindo um delicioso ritual que incluía a ida a algumas galerias, olhar umas vitrines, as pessoas nas ruas e tirar algumas fotos.
Naquele sábado, porém, decidi parar mais cedo. Andei até a Little Italy para comprar uns pães, queijos e um bom vinho para levar para casa, então, peguei o metrô na estação da Broadway com Canal, indo para o upper eastside da cidade.
Nessa época, eu morava em um antigo prédio na 3ª Avenida, perto da Rua 94.
O pequeno apartamento no quarto andar era meu refúgio. Tinha uma ótima vista parcial do East River, de onde eu podia ver as partes superiores das embarcações que passavam pelo rio, levando barcaças com tudo que é tipo de coisas e nos dias de cerração, eu podia ouvir o triste lamento das buzinas de neblina dos navios.
O trem não estava cheio, embora não houvesse assento livre, mas, em pouco tempo, o assento duplo perto da porta  esvaziou e me sentei. Foi aí que notei uma linda mulher em pé, no meio do vagão me observando.
Não costumo gostar de sentir pessoas me observando e, geralmente me dá uma sensação de que algo está errado.
Ela era realmente muito bonita e o mais estranho é que ela parecia estar fora de lugar. Vestia uma saia longa, de tom escuro de cinza, blusa clara com um bordado que seguia verticalmente, próximo aos botões e uma jaqueta longa combinando com a saia, que completava a imagem. E segurava um casaco em um dos braços. Concluí que ela estava vestida para a noite, para algum evento elegante ou algo assim, e por isso me pareceu tão inadequada para um vagão de trem, naquela hora.
Eu estava sentado, segurando a mochila e a câmera e não conseguia evitar ficar olhando a todo instante para aquela mulher. Perdido em meus pensamentos, para minha surpresa, notei que ela vinha em minha direção e aquilo me fez estremecer.
Ela se aproximou e perguntou com uma voz bem doce:
–Posso sentar?
Eu respondi, com uma voz inevitavelmente trêmula.
–Sim, por favor, sente-se.
E abri um espaço para ela sentar.
Ela ficou lá, sentada, quieta por um tempo. Então, virou-se para mim e perguntou se eu era um fotógrafo. Eu disse que era, mas amador, por amor à fotografia. Bastante interessada, começamos a conversar sobre o que eu gostava de fotografar e se fazia isso com muita frequência. Eu contei das minhas excursões aos sábados e ela achou minha dedicação maravilhosa.
Então, perguntei para onde estava indo, no que me respondeu:
- Nenhum lugar em particular, apenas vagando por aí.
Preocupado, aconselhei a não vagar muito para o norte da cidade porque lá não era lugar para uma pessoa como ela, mas não pareceu dar importância ao que eu dissera e perguntou se eu tinha fotos dos meus trabalhos. Eu disse que sim, que tinha uma boa quantidade de fotos impressas, a maioria em preto e branco.
E ela prontamente me perguntou:
- Posso vê-las. Eu adoraria vê-las.
 –Bem, acho que sim. E pensei que o meu apartamento não deveria ser do tipo que ela estaria acostumada a frequentar.
- É um lugar simples.
– Eu gosto de lugares simples.
Quando minha estação chegou, saltamos do trem e fomos para minha casa.
Como eu disse, o lugar era bem simples. Meus equipamentos de fotografia ficavam no quarto dos fundos, tinha a cozinha com um espaço para uma mesa, no canto, bem em frente à porta de entrada e o aposento da frente era uma combinação de quarto e sala de estar, com duas cadeiras bem confortáveis perto da janela, onde eu costumava sentar para ler e tinha uma pequena mesa de chá que completava o jogo.
Ela se acomodou confortavelmente em uma das cadeiras. Como era linda! Deveria ter uns trinta e poucos, não mais que quarenta anos. Entretanto, resplandecia uma aura tão jovial. Seus olhos brilhavam e havia uma excitação quase infantil pela expectativa de ver as minhas fotos.
Eu trouxe alguns álbuns que havia montado e ela começou a folhear, perguntando sobre cada foto. Ela queria saber de tudo a respeito delas. Quando eu as tirei, qual sentimento que tinha me feito tirá-las, se havia alguma história por trás delas.
Nunca alguém havia demonstrado tal interesse a respeito do meu trabalho e eu estava maravilhado. Era um momento tão mágico que eu desejei que nunca terminasse. Nos meus 26 anos de idade nunca tinha visto alguém tão cativante assim! Bebemos um pouco do vinho que eu tinha comprado e a conversa fluía tão naturalmente que nem percebemos o tempo passando.
Num certo momento, ela olhou em direção à janela e notou que a noite chegava. Suas feições mudaram e o sorriso, até então, contagiante, desapareceu. Apertou minhas mãos e me olhou silenciosamente. Seus olhos eram azuis esverdeados, como a superfície de algum lago encantado e seguravam lágrimas, por alguma razão. De repente, sem que eu tivesse tempo, ao menos de confortá-la, mesmo sem saber por qual motivo chorava, se levantou e disse que precisava ir embora, que não havia mais tempo e que jamais esqueceria esse dia.
Fui em direção à porta, atordoado com a brusca partida eu disse:
– Deixe-me, pelo menos, levá-la até lá embaixo.
– Não, ela disse. Vamos nos despedir aqui mesmo.
Ela me beijou levemente no rosto, soltando a minha mão e se dirigiu à escada.
– Espera, eu disse. Eu nem sei o seu nome.
– É Julia, ela disse. Julia.
Julia desceu apressadamente os degraus da escada e fui à janela para observá-la. Julia cruzou a rua, entrou num taxi, que dobrou a esquina da Rua 94, na direção da 2ª Avenida.
Ela nem sabia meu nome.

Continua ...

Um comentário: